CONCEITO E OBJETO EM TOMÁS DE AQUINO
Mateus10Tesis27 de Abril de 2014
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CONCEITO E OBJETO EM TOMÁS DE AQUINO
Raul Landim Filho PPGLM/UFRJ/CNPq
A noção de representação tornou-se um dos conceitos-chave das análises filosóficas quando a tarefa prioritária da filosofia passou a ser a de elaborar uma teoria sobre os limites do conhecimento humano. A partir dela e através dela as questões da possibilidade e dos limites do conhecimento objetivo ganharam uma nova relevância. Embora seja uma noção tematicamente presente nas filosofias modernas, a noção de representação desempenhou também uma função importante nas filosofias pré-cartesianas. “Representar uma coisa, escreve Tomás de Aquino, é conter a similitude dessa coisa.” Seria a no- ção de representação essencial à explicação do conhecimento na perspectiva de Tomás? A escola tomista formulou ao longo da história diferentes respostas a essa pergunta. Ainda hoje, interpretações contemporâneas do tomismo prolongam e aprofundam esse debate. Tal é o caso, por exemplo, dos defensores do Realismo Direto em Tomás de Aquino, tais como P. Geach, N. Kretzmann, D. Perler e outros. Estes intérpretes procuraram mostrar, direta ou in- diretamente, que a noção de representação não é um dos conceitos básicos da teoria tomista do conhecimento, apesar do uso do termo “representar” e do emprego sistemático e repetitivo do termo “similitude” em toda a obra de Tomás.
Questiones Disputatae De Veritate (doravante De Veritate), q. 7, a. 5, ad 2: “Ad secundum dicendum, quod repraesentare aliquid est similitudinem eius continere.”
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Segundo o Realismo Direto, a relação do conceito com o objeto (a coisa pensada) seria uma relação de identidade formal (identidade de forma).2 A tese da identidade formal significa que há uma identidade entre a forma da coisa e a forma intencional: é a mesma forma que existe efetivamente na realidade e intencionalmente na mente. Note-se que a suposição de que uma mesma forma tem instâncias diferentes, extra-mentais (reais) e mentais, legitima a tese da identidade entre o termo da ação intelectual do sujeito cognoscente e o objeto conhecido, o que tornaria ainda mais plausível a tese de Tomás de que o intelecto em ato é o inteligível em ato. Seria conseqüência dessa tese que não há intermediário mental entre o sujeito cognoscente e a coisa conhecida. “O que é instanciado na minha mesa e no meu intelecto é a mesma coisa, mas os dois modos de instanciação são radicalmente distintos”, explica Kretzmann. Portanto, o conceito não seria uma representação ou similitude da coisa, mas a expressão intencional na mente da forma da própria coisa. Não pretendo analisar as teses do Realismo Direto, mas expor a plausibilidade de outra interpretação: a interpretação representacionalista da teoria gnosiológica de Tomás de Aquino.5 Ao analisar as relações entre conceito e objeto, mostrarei que o conceito exprime intencional- mente o objeto nele contido e, ao mesmo tempo, significa por similitude a própria coisa a ser conhecida. De fato, na interpretação da teoria do conhecimento tomásico duas teses devem ser harmonizadas: por um lado, contra a interpretação representacionalista cartesiana, deve ser
2 Além de ser um princípio ontológico, “forma” é também principio de inteligibilidade e daí de cog- noscibilidade. Ver De Veritate, q. 2, a. , ad 8: “Ad octavum dicendum, quod illud quod est principium essendi, etiam est principium cognoscendi ex parte rei cognitae, quia per sua principia res cognoscibilis est; sed illud quo cognoscitur ex parte cognoscentis, est rei similitudo, vel principiorum eius; quae non est principium essendi ipsi rei, nisi forte in practica cognitione.” Ver também Super Boetium De Trinitate (doravante De Trinitate), q. 5, a. . “Intellectus in actu et intelligibile in actu sunt unum sicut sensu in actu et sensible in actu.” (Sum- ma contra Gentiles (doravante ScG), II, 59). Kretzmann 998, p. 6. Sobre o realismo direto em Tomás de Aquino, ver Kretzmann 99, espe- cialmente pp. 8-0; Kenny 2002; Perler 2000. 5 Atualmente, o mais destacado defensor da teoria representacionalista em Tomás de Aquino é C. Panaccio. Ver Panaccio 2002. Michon, na parte final do seu artigo (Michon 2007), distingue cinco sentidos de representacionalismo e caracteriza o Realismo Indireto como um representacionalismo inferencial.
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justificada a tese de que os objetos diretos do conhecimento são prioritariamente as coisas e não os conceitos (ou a species inteligível); por outro lado, deve ser demonstrado que só mediante os conceitos as coisas podem ser inteligidas ou pensadas. Daí surge a questão que será o fio condutor do artigo: qual é a relação entre o conceito e a coisa que, enquanto pensada, é objeto da representação conceitual? Note-se que a divergência entre as diversas interpretações contemporâneas da teo- ria do conhecimento tomista não concerne à existência de entidades intencionais que ex- pressam a forma de objetos na mente. É essencial para a teoria tomásica do conhecimento a noção de species intencional, pois para Tomás o conhecimento se realiza pela assimilação imanente da coisa: “Toda cognição se realiza através da assimilação da coisa conhecida pelo cognoscente [...]”.6 Ora, essa assimilação não pode ser uma assimilação física da coisa, mas tem que ser uma assimilação intencional: “Pois, o que é inteligido não está no intelecto por si (secundum se), mas segundo sua similitude: a pedra não está na alma, mas a species da pedra, como foi dito no De Anima III.”7 Assim, como conhecer8 envolve assimilação, no ato cognitivo a coisa extra-mental está presente no sujeito mediante a species, sensível ou intelectual. Sob esse aspecto, a species é um ente intencional, isto é, um sinal no sujeito cognoscente da presença de algo. A expressão ‘species’, que é a tradução latina da palavra ‘eidos’, significa na teoria tomista do conhecimento ou bem a forma, e neste caso ela não envolve a noção de matéria – individual ou comum –, ou bem a forma sensível ou inteligível (verbo interior (mental), conceito) e neste
6 De Veritate, q. , a. . 7 Summa theologiae (doravante ST), I, q. 76, a. 2, ad : “Id enim quod intelligitur non est in intellectu secundum se, sed secundum suam similitudinem, lapis enim non est in anima, sed species lapidis, ut dicitur in III de anima.” Grifo meu. 8 Segundo Tomás de Aquino, conhecer é julgar; só mediante o ato de julgar, de compor e de dividir (que pertence à segunda operação da mente), se efetua o ato de conhecer (ver, por exemplo, ST, I, q. 6, a. 2). No entanto, de uma maneira genérica, Tomás aplica também o termo “conhecer” não só às opera- ções sensíveis, como também ao termo da primeira operação da mente: à apreensão dos indivisíveis ou à formação do conceito ou do verbo interior (mental). O termo “cognição” é aplicado prioritariamente às operações do intelecto (formar conceitos (ª operação) e julgar (2ª operação)).
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caso ela não envolve a noção de matéria enquanto princípio de individuação, mas pode envol- ver a noção de matéria comum.9 É incontestável, pois, que o ato de inteligir é explicado por Tomás através da noção de species intencional. O problema é precisar a função dessa noção, em especial a função da species inteligível e a do verbo mental0 em suas relações com o fantasma (imagem sensível) e com a coisa inteligida. O uso da noção species na teoria gnosiológica de Tomás não exclui de antemão a hipótese de que o verbo mental (ou o que foi posteriormente designado pela tradição tomista de species expressa inteligível) – enquanto termo do ato de inteligir e pelo fato de conter ou significar in- tencionalmente o objeto do intelecto – seja considerado, por um lado, como o que é inteligido e, por outro lado, como aquilo que faz conhecer o próprio objeto que ‘existe’ intencionalmente no conceito ou nele está contido. Sob esse aspecto, o verbo mental pode ser interpretado como
9 A forma que específica o ato intelectual, isto é, a forma considerada enquanto princípio do ato de inteligir (como species inteligível) ou considerada enquanto termo desse ato (conceito ou verbo mental) envolve a matéria comum, mas “forma” enquanto significa forma, substancial ou acidental, não envolve qualquer composição com a matéria. Ver Sententia Libri Metaphysicae, lib. 7, l. 9, n. : Sciendum tamen est, quod nulla materia, nec communis, nec individuata secundum se se habet ad speciem prout sumitur pro forma. Sed secundum quod species sumitur pro universali, sicut hominem dicimus esse speciem, sic materia communis per se pertinet ad speciem, non autem materia individualis, in qua natura speciei acci- pitur.” Ver também Lonergan 2005, p. , ou a tradução francesa da obra: Lonergan 966, pp. 26-27. 0 Desde os seus textos de juventude, como no De Veritate, q. , a. , e, sobretudo, nos seus textos de maturidade como na ScG, IV, ; De Potentia, q. 9, a. 5; ST, I, q. , a. , Tomás afirma que o verbo exte- rior (a palavra escrita ou falada) significa o verbo interior (o conceito ou o enunciado). Nós usaremos a expressão “verbo mental” como sinônima da expressão “verbo interior”. Note-se que, para Tomás, o verbo interior é prioritário face ao verbo exterior, isto é, a função e o significado do verbo interior independem do verbo exterior, mas não ao contrário. Ver Expositio Libri Peryermenias, I. 2. De Veritate, q. 2, a. 6: “Sed tamen tantum interest; quod similitudo quae est in sensu,
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