Representações Paleolíticas Da Memória: Sobre Arte Rupestre, Memória E Existência No Filme "A Caverna Dos Sonhos Esquecidos" De Werner Herzog.
angesierra26 de Agosto de 2013
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Representações paleolíticas da memória: sobre arte rupestre,
memória e existência no filme “A Caverna dos Sonhos
Esquecidos” de Werner Herzog.
Guilherme Bianchi
Resumo: O presente trabalho objetiva constituir uma breve análise do documentário “A Caverna dos
Sonhos Esquecidos” de Werner Herzog de modo a articular o material apresentado por Herzog acerca das
pinturas rupestres da Caverna de Chauvet-Pont-d'Arc com importantes momentos da história da filosofia
do século XX que procuraram pensar as relações entre arte, memória e vida. Recorreremos
principalmente à tradição nietzschiana do pensamento filosófico procurando elaborar uma breve análise
sobre a perspectiva filosófica acerca do problema do “nascimento da arte” e seus efeitos em alguns
autores que seguiram os rastros de Nietzsche.
Palavras-chave: Werner Herzog, arte rupestre, Nietzsche.
Abstract: This paper aims to provide a brief analysis of the Werner Herzog's documentary "The Cave of
Forgotten Dreams" to articulate the presented material by Herzog about the cave paintings of Chauvet-
Pont-d'Arc with important moments in the history of XX century philosophy who sought to think the
relations between art, memory and life. We will return to nietzschenian tradition of philosophical thought
seeking to prepare a brief analysis, on a philosophical perspective, on the problem of the "birth of art" and
its effects on some authors who followed the traces of Nietzsche.
Keyword: Werner Herzog, cave art, Nietzsche.
Não: uma torre se erguerá do fundo
do coração e eu estarei à borda:
onde não há mais nada, ainda acorda
o indizível, a dor, de novo o mundo.
(Rilke)
Bem conhecido no cenário cinematográfico pela singularidade temática de seus
filmes, Werner Herzog vem desde a década de 60 arregimentando seguidores e
entusiastas do seu trabalho, sendo reconhecido e premiado na década de 70 e 80 com
seus filmes O Enigma de Kaspar Hauser, Aguirre, a Cólera dos Deuses e Fitzcarraldo.
Herzog procurou concentrar, nos últimos anos, seu trabalho através de um espectro
documental circundado pelas mesmas temáticas singulares que marcaram suas obras de
ficções. É esse, aliás, um ponto importante da natureza de sua obra: as intersecções
múltiplas entre realidade e ficção, entre materialidade e transcendência.
Procuraremos, nesse breve trabalho, estabelecer mais do que uma mera crítica
cinematográfica. O objetivo é perceber, através de uma obra específica dos novos
trabalhos documentais de Herzog, a força avassaladora que a realidade se interpõe na
imaterialidade com o espectro daquilo que Hegel chamaria de belo, ou seja, a ideia
enquanto unidade imediata do conceito e de sua realidade. Nosso objetivo não é mais do
que procurar, na estrutura geral da obra de Herzog, uma relação das possíveis reflexões
advindas das suas provocações no documentário de 2010 “A Caverna dos Sonhos
Esquecidos”, com alguns apontamentos da história da filosofia que procuraram pensar
as relações entre memória, vida e representação.
Em 1994, três espeleólogos andavam pelo complexo de cavernas existentes na
região de Vallon-Pont-d'Arc, no sul da França. Uma fraca corrente de ar proveniente de
uma pequena abertura atraiu a atenção do trio que, depois de horas planejando como
adentrar àquela rocha (que até então não parecia obter mais do que um poço obscuro),
encontraram câmaras com tetos muito altos e diversos ossos de animais espalhados no
chão. Eles haviam encontrado o que se chamou posteriormente de Chauvet-Pont-d'Arc
Cave. Um dos mais antigos sítios de arte pré-histórica já descobertos e, por certo, o
mais bem conservado. Pesquisadores apontam que o excelente estado de conservação
das pinturas e dos objetos na caverna é fruto, provavelmente, de um deslizamento de
rochas ocorrido há mais de 20 mil anos atrás que obstruiu qualquer entrada para a
caverna e que, consequentemente, preservou o interior da caverna de intempéries
naturais produzindo o fantástico efeito de extremo pertencimento no momento em que
observamos as ditas representações.
O que Herzog investiga é a própria exposição delimitada da cultura hominídea
desenvolvida no período paleolítico, assim como nervuras do mundo que circundavam a
vida desses povos ancestrais. A caverna de Chauvet destaca-se, talvez mais que outras,
por possuir o acervo estético mais antigo até agora encontrado, de algo que poderia
remeter a uma cultura humana paleolítica, e, acima de tudo, com uma preservação
fascinante para pinturas constituídas há aproximadamente 30 mil anos atrás.
Herzog foca-se em vários aspectos, no entanto, ao que toca a estética (em
sentido amplo) daremos ênfase primeiramente a uma pintura em particular, muito
retratada na película, na qual vários pontos vermelhos são pintados com as mãos sobre
uma imensa parede (ver figura 1). No entanto, cabe notar que ao longo do documentário
outras obras são apresentadas com extrema sensibilidade por parte do diretor, entre elas
vale a pena citar um enorme painel em que vários animais, dentre os que mais se
destacam são cavalos e rinocerontes pintados de forma impressionantemente claras e
fulgentes; há também uma câmara inferior onde leões e leoas são detém a hegemonia de
destaque (ver figura 2); e uma pintura isolada de uma mulher e um bisão, pintados em
uma enigmática rocha isolada das outras (a única representação da caverna que se
aproxima de uma representação humana). Outras coisas, igualmente misteriosas, são
encontradas na caverna de Chauvet e Herzog magistralmente expõe como algo que nos
remete a altares e instrumentos musicais. No entanto, devido à extensão do material
apresentado no documentário, optamos como exposto acima, por um recorte específico,
de tal modo que é interessante ter em mente primeiramente essas muitas pinturas
vermelhas na parede feitas por um antigo humano com as mãos.
Figura 1 - The Panel of Large Red Dots, Chauvet.
O cinegrafista aponta, com ajuda de especialistas na área de paleontologia,
geologia, estética, algumas possíveis explanações a cerca desses feitos artísticos. A obra
documental é recortada, em sua narrativa, com uma profunda reflexão sobre o fascínio
que essas obras causam ao humano moderno. Ao observarmos obras ancestrais (como
essas pinturas rupestres) sutilmente nos remete a uma velha busca da religação com o
passado, que mesmo Herzog expõe em sua metáfora invocando os românticos alemães –
encontra-se na caverna, quase como um leve toque, entre nossas delicadas mãos junto às
rústicas mãos de um irmão de outra era. Esse encanto causado pelas imagens poderia
nos remeter a mensagens que não deveriam ser indeléveis por algum motivo, quase
como um chamado aos que viriam, depois de milhares de anos, revisitar Chauvet.
As tentativas de aproximação que se esforçam por mostrar que a arte
de Chauvet se inscreve num contexto coerente não conseguem
dissimular a extraordinária solidão do grande santuário ardechense,
cujos temas, técnicas e estilos se distinguem não só dos que estão
patentes nos raros conjuntos parietais europeus atribuíveis ao
Aurignaciano, mas igualmente de todos os conjuntos do Paleolítico
Superior (LORBLANCHET, 2013:5).
Friedrich Nietzsche, em sua segunda dissertação da obra Genealogia da Moral,
apontará algo que talvez seja interessante e significativo em nosso objetivo de
considerar as pinturas apresentadas por Herzog por um ponto de vista filosófico.
Nietzsche se questiona:
Como fazer no bicho-homem uma memória? Como gravar algo
indelével nessa inteligência voltada para o instante, meio obtusa, meio
leviana, nessa encarnação do esquecimento? Esse antiquíssimo
problema, pode-se imaginar, não foi resolvido exatamente como meios
e respostas suaves; talvez nada exista de mais terrível e inquietante na
pré-história do homem do que a sua mnemotécnica. “Grava-se algo a
fogo para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar
dor fica memória” – Eis um axioma da mais antiga (e infelizmente
mais duradoura psicologia da terra). (NIETZSCHE, 1998:50)
Seguindo o pensamento nietzschiano exposto acima, poderíamos nos interrogar:
qual então seria essa lembrança ancestral, que essas pinturas rupestres, gravadas a mão
com tanta veracidade, aspiraram deixar registradas? Que dor maior desengatilhou em
algum bicho-humano a ponto dele olhar o real e representá-lo em uma caverna? Em
outras palavras – o que eles quiseram dizer com essas obras? Talvez fosse infrutífero
arriscar intepretações e possíveis significados para essa antiga arte, pois, assim como
Herzog mesura, acreditamos que a única coisa que nos liga a eles é a história em sua
dimensão vivida.
No entanto, acreditamos que considerações são possíveis sobre tais estéticas, e a
história da filosofia pode nos oferecer
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