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Por Entre As Fissuras Do Modelo Republicano Francês: Análise Fílmica De O Ódio (1995) De Mathieu Kassovitz

chicotdl9 de Octubre de 2013

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Por entre as Fissuras do Modelo Republicano Francês:

Análise Fílmica de O Ódio (1995) de Mathieu Kassovitz

RESUMO: Partindo dos recentes distúrbios ocorridos em outubro e novembro de 2005 na França, o presente artigo 'revisita' analiticamente um filme cult francês, O Ódio (1995) de Mathieu Kassovitz. A análise, além de retecer criticamente a trama ficcional, propõe um entreglosamento entre realidade social e filme. A intenção é levantar novos elementos para uma melhor compreensão da realidade das periferias urbanas contemporâneas. Para tanto, a análise foca na questão das identidades marginais em contextos pós-coloniais, da violência em suas variadas formas e da (in)visibilidade social em sociedades dominadas pela midiatização da realidade. Ainda que esse exercício intelectual se limite ao contexto francês, sua metodologia e alcance analítico podem servir para o caso brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE: análise fílmica; violência étnica; identidades marginais; invisibilidade social; periferia francesa.

Por entre as Fissuras do Modelo Republicano Francês:

Análise Fílmica de O Ódio (1995) de Mathieu Kassovitz

A França é uma República indivisível, laica, democrática e social. Ela assegura a igualdade perante a lei a todos os seus cidadãos sem distinção de origem, de raça ou de religião.

(Artigo 2, Constituição de 1958)

INTRODUÇÃO CONTEXTUAL e ATUALIDADE DO TEMA

No dia 6 de Abril de 1993, a polícia no 18ème arrondissement de Paris abordou três jovens, dois deles menores de idade, que estavam supostamente roubando cigarros. Há uma grande população imigrante nesta área e os habitantes reclamam dos incessantes controles de identidade e policiamento bruto. Um dos jovens abordados tinha 17 anos e se chamava Makomé M’Bowole, nascido no ex-Zaire. Ele foi levado à delegacia para conversar com o investigador de polícia. Após duas horas, ele foi posto em custódia. O Procurador exigiu a soltura dos jovens envolvidos. Os pais de M’Bowole não conseguiram ser encontrados. O oficial continuou o interrogatório, atirou e matou o menor. Segundo as testemunhas, o menor estava xingando o oficial. Este se irritou e colocou sua arma na têmpora do menino, disparando por acidente. “Eu só queria assustá-lo”: foi o que o oficial disse em sua defesa .

Esse episódio resultou numa série de violentos distúrbios que o filme O Ódio (1995) de Mathieu Kassovitz usa como ponto de partida para delinear a realidade social da França contemporânea. A semelhança com o ocorrido doze anos depois é assombrosa – quando uma perseguição policial, culminando na morte de dois jovens eletrocutados ao se esconder num transformador de energia de alta tensão, desencadeou dias de revoltas e depredações públicas em outubro e novembro de 2005. Não parece ser um fato isolado e desviante, mas algo revelador do “mal-estar profundo” da sociedade francesa que o próprio presidente da França, Jacques Chirac, admitiu existir no seu comunicado oficial televisionado ao país. De fato, o país vem sendo palco do aumento do desemprego estrutural que atinge majoritariamente as populações das banlieues e do recrudescimento da repressão policial e de inúmeras discriminações – particularmente ligadas à imigração.

Trata-se de um fosso conceitual e real entre os franceses “genuínos” e os franceses estrangeiros (por exemplo, filhos de imigrantes). Mas afinal, quem são os estrangeiros? Os recém-imigrados, que todavia não possuem cidadania francesa, ou os franceses considerados menos franceses, por causa de suas origens étnicas? Essa confusão pode ser nula nos rigores formais da lei, mas a experiência cotidiana das discriminações revela que o modelo republicano francês e seu humanismo universalista estão fraturados...

O ano de 1968 é sempre evocado como marco de rupturas. A França vivia o auge de “30 anos gloriosos” de prosperidade econômica. A tônica de 1968 era a ruptura com padrões comportamentais atrasados, que não mais condiziam com os novos tempos. A pílula anticoncepcional trazia as mulheres para a arena da participação na sociedade e urdia a liberdade sexual. A Guerra do Vietnã escrachava a estupidez das agressões militares e do uso de jovens alistados como buchas de canhão. Nos EUA, os negros se levantavam contra a ancestral discriminação que sofriam. As instituições educacionais já não condiziam com a expectativa dos jovens universitários. Era uma reação contra um estado de coisas. Havia, em toda parte, uma espécie de denominador comum nas diferentes manifestações: a recusa ao modo de vida e às regras do jogo que o capitalismo impunha. Por trás das manifestações havia um sonho, uma utopia. Foram momentos de explosão coletiva, em busca de saídas coletivas.

A atual rebelião dos jovens europeus é diferente. É uma explosão de raiva, um extravasar de sentimentos contidos. Estão fartos de serem estrangeiros em sua própria terra. Filhos de imigrantes, mas nascidos na Europa, sofrem a dura exclusão de serem muçulmanos, negros, mestiços. Estão fora do mercado de trabalho, como sempre estiveram fora da aceitação como cidadãos de fato. Diferentemente de seus pais, que migraram para a Europa quando havia trabalho em abundância e faltava mão-de-obra, os que agora incendeiam carros são vítimas de uma crise de identidade: têm menos vínculos culturais com a terra dos pais e não são aceitos no país onde nasceram e se criaram. Desterrados, são identificados como população-problema e vítimas de todos os estigmas negativos. A atual rebelião juvenil européia é mais do que apenas expressão de vandalismo. É ao mesmo tempo um pedido de socorro, de maior visibilidade e uma demonstração de recusa. Recusa à fatalidade da exclusão social, que os condena à condição de desnecessários e indesejáveis. Mas não parece estar alicerçada em um projeto de utopia. Diferentemente de 1968, os que promovem a revolta de agora não querem mudar o mundo; apenas pedem para entrar nele...

Tendo em vista esta introdução contextual, pensamos em fazer uma análise de O Ódio focando a maneira como as diversas violências se evidenciam no filme. No entanto, resultaria num ensaio redundante, pois a violência permeia o filme todo e está presente nas falas dos atores, nas agressões que sofrem, na arquitetura da cidade, etc... Na verdade, estaremos sempre falando de violência, mas preferimos focar tão somente na realidade social e nos aspectos da cultura francesa contemporânea a que estão sujeitos os jovens das banlieues. A confusão entre realidade social e realidade fílmica é proposital. Nos ateremos portanto em como esta juventude e o meio que a cerca são filmicamente construídos; e em como esse processo de ida e vinda entre realidade e representação fílmica pode nos iluminar mais sobre os fenômenos de marginalização e violência nas sociedades contemporâneas. No presente caso, focamos a França; mas alguns pontos podem ser de interesse para o contexto brasileiro.

ANÁLISE FÍLMICA

O Ódio, escrito e dirigido por Kassovitz, é um filme que ostensivamente retrata a brutalidade policial contra os jovens beurs (termo nativo que designa os árabes nascidos na França) e outros imigrantes de origem africana. O filme, num estilo documental em preto e branco, usa ferramentas do realismo social para narrar 24 horas na vida de três banlieusards: Vinz, um judeu branco; Saïd, um beur; e Hubert, um negro. A narrativa é estabelecida a partir da revolta incitada por um incidente de abuso policial que deixa em coma Abdel, um amigo deles, logo após apanhar sob custódia da polícia. Outro fato importante é que Vinz encontra uma arma que um policial perdeu durante as manifestações e isto acarreta modificações no comportamento dele. A escolha da caracterização também é interessante porque subverte certos pré-conceitos que geralmente temos das diversas etnias representadas: Vinz, o invocado metido a gangster; Saïd, o ingênuo; e Hubert, o negro boxeador, íntegro e cheio da verdade, que ajuda a família com as despesas traficando haxixe. A própria cor do trio parece servir para tecer uma fábula social: um trio black, blanc, beur (numa ironia ácida com o bleu, blanc, rouge da bandeira francesa).

Com efeito, o filme incessantemente faz referências à realidade sociológica a que se propõe fazer uma ficção: Abdel é Makomé M'Bokole no filme e o enredo acontece num projeto habitacional fictício chamado Les Muguets; mas que alude a Les Minguettes, um projeto similar de Lyon, de onde nasceu o movimento Beur em 1983, quando imigrantes de origem norte-africana das cités marcharam até o gabinete do presidente Mitterand gritando palavras de ordem por igualdade e fim do racismo .

O que fica patente é que o filme confunde em si mesmo ficção e realidade social: é um filme que fala à si mesmo e à sua época sobre a sociedade que retrata; e toma emprestado elementos da realidade para construir uma narrativa e estética propriamente cinematográficas. Trata-se de uma espécie de anti-mito ou de fábula social em que realidade sociológica e texto experimentam uma certa contigüidade. Isto, por sua vez, deve ser relativizado, pois o filme também não é a representação transparente da realidade. Tal leitura “naturalizada” faz tanto mais parte da estratégia narrativa do próprio realismo social que fomenta a confusão entre ficção e documentário e entre filme e realidade. O texto docu-ficcional enquanto produto cultural se mistura à realidade social a partir da qual foi construído e seu potencial analítico é, numa primeira leitura, posto de lado e submetido

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